quinta-feira, 13 de abril de 2017

Na casa de meu Pai há muitas moradas... mas em Registro teremos somente a Via Crucis




            A semana que se iniciou no último domingo é a mais importante para as celebrações litúrgicas cristãs. Seu significado é tão profundo que chamamo-la de “Santa”. E temos bastante razão em fazê-lo. Pois são os eventos narrados nos Evangelhos correspondentes a esta semana que definem – ou deveriam definir – o sentido de “santidade” para a fé dos seguidores de Jesus, o Cristo.

            Todavia, há um certo descuido por parte da maioria quando, na tentativa de atualizar o significado dos acontecimentos finais da vida de Jesus, acabam por enfatizar exacerbadamente seu sofrimento na cruz e, posteriormente, sua gloriosa ressurreição. Não que tais ocorridos não devam receber atenta consideração. É fato que se constituem temas centrais, indispensáveis e essenciais para a fé do povo cristão. Não obstante, quando são enfatizados isoladamente, isto é, desvinculados da narrativa que compreende os demais eventos da “última semana” – especialmente o “Domingo de Ramos” – sofrem um significativo esvaziamento. Por exemplo, sem o decisivo confronto representado na entrada de Jesus em Jerusalém, cercado por gente pobre e corajosa que lhe anunciava como seu “Rei”, os relatos da prisão, crucificação, morte e ressurreição soam como “tragédia” que, contudo, adquire seu “final feliz” de maneira sobrenatural.

            Dito de outro modo, sem o “Domingo de Ramos” os eventos subsequentes sugerem o desenrolar de um acordo tácito entre Jesus e o Pai, firmado “antes da fundação do mundo”, cujo desfecho – conhecido previamente por ambos – concederia aos humanos a mera “contemplação”. Ainda que afetada pela admiração de alguns, desforra de outros ou protestos de uns poucos mais, nada além de “contemplação”.

            Cabe, a esta altura, perguntar, portanto: qual a diferença que o “Domingo de Ramos” provoca na leitura dos eventos imediatamente posteriores? Que tipo de “confronto” ele simboliza? A resposta exige uma brevíssima consideração do testemunho histórico de Eusébio de Cesareia, que nos oferece o contraponto da entrada de Jesus em Jerusalém. Ocorre que, pelo outro lado da cidade, cercado de pompa e circunstância, cavalgando sobre tapetes vermelhos cuidadosamente estendidos e ladeado por bandeiras e baluartes bem mais imponentes do que os “ramos” chacoalhados pelo grupo que seguia Jesus, entraria para as celebrações da Páscoa dos Judeus o governador romano da Judeia, Pôncio Pilatos. Sua presença representava o Imperador Romano, César “Augusto” que, por sua vez, representava o sistema de dominação vigente naqueles dias.

            Ao entrar na cidade numa procissão improvisada e aos gritos de “Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor; bendito o reino do nosso pai Davi, que vem em nome do Senhor. Hosana nas alturas!”, Jesus manifesta provocativamente sua frontal oposição ao sistema de dominação que oprimia seus concidadãos. Exatamente este ato selará definitivamente seu destino. Sim, Jesus morrerá por um posicionamento eminentemente político, assumido a favor dos pobres, donde a inscrição que justificava sua sentença de morte na cruz: I(esus) N(azarenus) R(ex) I(udaeorum). Ou seja: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”.

            Este é o argumento que faltava aos sacerdotes e “religiosos” aprovados do e pelo Templo para eliminar a presença incômoda daquele que eles mesmos sempre designaram como sendo um “profeta louco e agitador do povo”. Roma não se intrometia em assuntos religiosos dos povos dominados, desde que não representassem ameaça à “paz” artificial que mantinham às custas de propaganda. Mas Roma era implacável com qualquer menção a um sistema de governo alternativo. A quem se atrevesse questionar o sistema de dominação imposto por César havia uma pena capital e exemplar: a crucificação pública. Sob a acusação de crime de lesa pátria.

            É típico dos sistemas de dominação se constituírem por três elementos: 1) Opressão política – na qual prevalecem os interesses de poucos sobre o bem-estar de muitos; 2) Exploração econômica – pela qual a manutenção dos privilégios de alguns é garantida pela usurpação dos direitos de todos; e, por último, mas de importância vital para o sistema, 3) Legitimação religiosa – sob a qual toda safadeza orquestrada pelos dominadores era revestida pela aura de uma indecifrável “vontade de Deus”.

            Nos dias de Jesus, o Templo executava com precisão a função de legitimar o sistema de dominação romano. Por isso, já no dia seguinte à entrada “simbólica” – mais do que “triunfal – na cidade santa (?) Jesus avança contra as estruturas do Templo e anuncia a sua (necessária) destruição pela e para o bem da fé – a ideia de que sua intenção era “purificar” o Templo já é uma solução posterior que visava à conciliação. Consequentemente, os “principais sacerdotes” procuraram sua condenação à morte com mais afinco. Sempre há os que se curvam às seduções imperiais, mesmo vestidos com paramentos sacerdotais. Para Jesus, uma religiosidade que legitima sistemas de dominação merece murchar e secar até a raiz, à semelhança da figueira que não produz fruto.

            Dias antes destes episódios, porém, o Evangelho de João relata a longa “conversa” entre Jesus e seus discípulos, marcada pelo tom de “despedida”. É característico da narrativa do Evangelho de João enfatizar os “discursos” de Jesus, enquanto Marcos, Mateus e Lucas priorizam seus “atos”. Com isto, João confere significado teológico aos “atos” da última semana, conforme descritos pelos outros três evangelistas. Um tópico desta conversa, situado bem no início, merece destaque. Após tentar consolar seus discípulos e discípulas – que só então tomavam consciência do destino iminente de seu Mestre –, Jesus promete: “Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito. Vou preparar-vos lugar” (João 14,2).

            É, pois, bastante adequado concluir que o “Reino” que Jesus representa ao entrar em Jerusalém, e que está frontalmente oposto ao sistema de dominação romano, é uma realidade política na qual há lugar para todos morarem. Uma realidade na qual a moradia pode ser estabelecida com tranquilidade, paz e justiça. Na qual não há despejos, pois é possível acomodar todos e todas. Jesus morrerá por causa deste “projeto”. Antes, no entanto, amargará uma tenebrosa Via Crucis – para muitos Via Sacra – caracterizada pela humilhação e exposição de seu sofrimento, insuficientes, porém, para comover a “opinião pública”, que acrescentava insultos e esculachos ao combalido condenado.

        A releitura destas passagens, por ocasião das celebrações litúrgicas, alertou-me para as lamentáveis convergências entre a narrativa bíblica e os últimos/próximos eventos de nossa cidade. De certa forma, este texto é fruto da urgência em desincumbir-me das responsabilidades pastorais que me competem, diante de nossa sociedade. 

Venho acompanhando há algumas semanas o triste desfecho da luta dos moradores da Vila Ouro e Pinheiros contra o despejo. Tomei conhecimento da irrevogável decisão judicial, pautada em princípios constitucionais inquestionáveis. Mesmo assim, não há como questionar a pressa da Administração Municipal para executar uma sentença com efeitos tão dolorosos, apesar de revestidos de legalidade.

          Em diálogo com uma advogada competente e imparcial, fui informado da possibilidade de negociação entre as partes durante qualquer fase do processo, o que abriria um importante horizonte de diálogo que, acatando a sentença, poderia ao menos estender o prazo estabelecido para sua execução, com vistas à mobilização digna e pacífica dos moradores e moradoras dos referidos bairros. Estou ciente, também, da prorrogação do prazo inicial por mais sessenta dias, fruto da negociação com o judiciário e da acolhida solidária, por parte de sua representante, dos argumentos apresentados pelos moradores e seus respectivos representantes. A reivindicação desta iniciativa por parte da Administração Municipal não dirimiu minhas dúvidas, antes, tornou-as mais profundas. Sabendo desta possibilidade, como justificar a demolição apressada de algumas unidades residenciais, adotando uma postura claramente ameaçadora?

            Qual a justificativa para uma postura tão refratária, por parte da Administração Pública, no que concerne ao diálogo com as famílias atingidas por este destino, que viram frustradas mais uma vez suas expectativas de pelo menos ouvir diretamente o chefe do Poder Executivo municipal? Talvez haja respostas a tais questões, mesmo que ainda não tenha conseguido encontrá-las.

            O que me parece, de fato, inexplicável, é a decisão da Administração Pública de promover um “Espetáculo da Paixão de Cristo” em praça pública e convidar a população para se “envolver” com o evento mesmo diante do cenário social contemporâneo. Resguardando os atores e atrizes, bem como os trabalhadores e trabalhadoras envolvidos com a estrutura física – que estão dignamente granjeando o pão de cada dia – é necessário criticar as instituições envolvidas com a realização deste “espetáculo”. O que pretendeis vós? Comover a população com a repetição da biografia “trágica” de Jesus, enquanto sua presença como Cristo da fé é manifestamente despejada de alguns locais de nossa cidade? “Ganhar” a nossa cidade pra Jesus, enquanto mansamente acolhem o despejo daqueles e daquelas por quem Ele “perdeu” sua vida? Legitimar religiosamente um sistema que domina e exclui, recorrendo justamente à biografia de quem foi condenado por apregoar exatamente o oposto?

            Não irei ao vosso “espetáculo”. Há biografias mais comoventes à nossa disposição, porque seu sofrimento é concreta e escandalosamente presente entre nós. Sim, porque, qualquer repetição dos eventos da “Semana Santa” que dispense o compromisso com o Reino no qual há lugar para todos é simplesmente isso: mera repetição biográfica. E o compromisso com o Reino que inclui todos e todas não dirige meus passos à praça central, mas à periferia, à Vila Ouro e Pinheiros. É lá que encontro o crucificado. E de lá escuto o sussurro do protesto que renova a esperança: Ressuscitaremos com Cristo!

            Não oro pois, por eles e elas. São detentores da promessa de que, cedo ou tarde, haverá lugar para todos e todas. Decido orar por vós. Para que não incorram num caminho por demais escorregadiço, comprometendo não somente vossa caminhada, mas principalmente vosso destino, tão concisa e profundamente expresso na exclamação profética: Ai!

Nele, que compartilha a senda dos que sofrem e teimosamente ressuscita a esperança dos que não encontram lugar neste mudo,

Rev. Martin Barcala

Teólogo e Pastor Metodista